Noé e o Dilúvio: Um Evento Global ou Local? - A Bíblia Sagrada | Intérprete Nefita

Noé e o Dilúvio: Um Evento Global ou Local?

Uma análise do relato bíblico do dilúvio sob a luz da lógica, história e ciência


Por Luiz Botelho 19 de Julho de 2020
Noé e o Dilúvio: Um Evento Global ou Local?

A história do dilúvio e arca de Noé tem por muito tempo sido um dos mais icônicos eventos em todos os volumes de escrituras. Gênesis descreve o relato do profeta Noé e sua família, e suas sucessivas tentativas mal sucedidas em converter o povo ao arrependimento, a contrução da arca, a reunião de um casal de cada espécie e por fim, o dilúvio, que de acordo com as escrituras eliminou da terra toda a vida, além daquelas presente na arca.[1]

Interpretar eventos escriturísticos quase sempre exige uma cuidadosa análise de contexto, etimologia (significado de palavras), ermenêutica (interpretação), cultura e público alvo. Cada um desses elementos tem o potencial de drasticamente moldar o entendimento de um evento histórico. No relato do dilúvio não é diferente.

Menções posteriores ao profeta Noé e ao dilúvio eliminam do ponto de vista teológico a ideia de que os personagens ou evento possuíam natureza simbólica, ou alegórica.[2] 

Desafios Para o Dilúvio Global

Por muito tempo, entretanto, a literalidade de tal relato tem sido questionada, visto que sua descrição escriturística frequentemente esbarra em evidências (ou ausência de evidências) históricas, geológicas e cronológicas. Com o tempo, isso tem levado diversos estudiosos a questionar se o dilúvio foi de fato um evento global ou geograficamente local. A crença em um dilúvio global normalmente esbarra nas seguintes objeções e evidências:

1. Aonde teria Noé encontrado tantas árvores no Oriente Médio pra construir um barco grande o suficiente pra abrigar um casal de cada espécie de animais?
2. Egípcios precisaram de exércitos inteiros de dezenas de milhares de escravos para construir as pirâmides em dezenas de anos. [3] Como teria Noé construído uma arca do porte necessário para abrigar todas as espécies de vida terrestre com menos de 8 pessoas?
3. Se todas as formas de vida morreram no dilúvio no Velho Mundo, como explicar a diversidade de vida presente em todos os continentes? Como espécies marsupiais como Cangurus, por exemplo, teriam chegado à Austrália após o dilúvio? 
4. Como as várias espécies do Bicho-Preguiça teriam migrado do Velho Mundo para a América Central e América do Sul, seus habitats naturais?
5. Como Pinguins teriam chegado à Antártica e Ursos polares ao Polo Norte?
6. Se essas e outras espécies únicas a específicas partes do globo migraram a essas regiões após o dilúvio, por que seus fósseis jamais foram encontrados no caminho?
7. Para adeptos de crenças de que Dinossauros morreram no dilúvio, por que seus fósseis datam de milhões, não milhares de anos?
8. O que animais carnívoros comiam durante o tempo na arca, senão uns aos outros? O que eles comiam no caminho de migração para seus habitats naturais? 
9. Como todas as espécies de vida vegetal teriam sido armazenadas na arca e em seguida colocadas em seus habitats naturais, visto que a maioria não poderia sobreviver embaixo da água?
10. Como explicar a imensa diversidade genética humana presente atualmente se todos as pessoas descendem de um pequeno grupo de apenas 8 pessoas alguns milhares de anos atrás? 
11. Por que diversas civilizações que coexistiram durante a época do dilúvio não possuem nenhuma menção a ele em sua história? Por que civilizações que tem em suas histórias mitos relacionados a dilúvios, como a China, possuem história ininterruptamente documentada?[4]

Se apelarmos para o sobrenatural, todas essas questões podem ser respondidas com um superficial "porque essa era a vontade de Deus" ou "pelo poder de Deus". Entretanto, o mundo e universo é testemunha de que Deus estabelece leis naturais e age através dessas leis para o alcance de seus desígnios. Tais objeções não invalidam a realidade do dilúvio, mas potencialmente dão contexto para a forma com que ele tenha acontecido. 

Como mencionado anteriormente, as escrituras frequentemente descrevem eventos pelos olhos de seus observadores, que nem sempre são bem sucedidos em relatar sua objetividade física. Por exemplo, em Josué 10:12,13 temos a menção da ocasião em que Josué ordenou que o Sol parasse, e que "o sol parou no meio do céu e por quase um dia inteiro não se pôs." Com o conhecimento moderno do movimento de rotação da terra, seria fato afirmar que o verso em questão errou ao afirmar que o Sol parou. Se tal relato realmente aconteceu, seria necessária que a terra parasse de girar para que visualmente o sol "parasse" no céu. Tal crítica, entretanto, seria tola, pois a descrição de Josué era visual e baseada em seu limitado conhecimento de astronomia. Contexto histórico é essencial.

No caso do dilúvio, é provável que alguns desses elementos tenham tido um papel similar na descrição dos eventos. Em outras palavras, o dilúvio pode ter sido um evento local, descrito com a magnitude que ele teria para os observadores que sobreviveram a ele, ou o viram por meio de revelação. 

O Ambíguo Uso da Palavra Terra nas Escrituras

No artigo "The Flood and the Tower of Babel" presente no site oficial da Igreja, o historiador Donald W. Parry, argumenta a favor do dilúvio global afirmando que a menção bíblica do dilúvio como uma destruição de "toda a carne" e "tudo o que há na terra" e a Igreja rotineiramente se refere ao dilúvio como um evento global.[5] O cientista e professor da BYU Duane E. Jeffrey sobre isso declarou:

"Um problema crítico sobre a história do dilúvio na Bíblia tem a ver com a tradução das palavras hebraicas 'eretz' e 'adamah' como sendo "toda a terra". O que esses termos significam? É amplamente reconhecido que Hebraico é um idioma maravilhoso para poetas, considerando que praticamente todas as palavras tem múltiplos significados. Mas essa mesma característica o torna um idioma terrível para precisão. As palavras 'eretz' e 'adamah' podem de fato ser uma referência geográfica para o que normalmente chamamos de 'terra'. Mas não é absolutamente claro que as antigas civilizações possuíam um conceito de planeta esférico como você e eu possuímos. Muitos estudiosos da Bíblia argumentam que os escritores da Bíblia pensavam em termos de uma terra plana que era coberta por um firmamento como um domo, no qual as janelas do céu literalmente foram cortadas..."[6] 

A ideia de que a palavra "terra" era empregada de maneiras diferentes parece ser reforçada por Gênesis 1:10, onde o próprio Senhor define como "terra" a porção seca do mundo. Êxodo 10:15, por sua vez, afirma que gafanhotos durante as pragas do Egito, "cobriram toda a face da terra", o que novamente sugere que o uso da palavra "terra" se referia à porção geográfica conhecida pelos observadores dos eventos, e não a todo o planeta, cujo formato e tamanho era desconhecido na época. Em Lucas 2:1 lemos ainda o relato do decreto de César Augusto para que "todo o mundo" se alistasse. Já em Atos 2:5 é dito que "Judeus, homens religiosos de todas as nações que estão debaixo do céu" se apresentaram para celebrar o dia de Pentecoste.

O que todas essas passagens tem em comum? Todas utilizam o artifício literário da hipérbole, ou exagero, para se referir a eventos locais. Algo muito mais comum no idioma Hebreu do que nos idiomas atuais. Outras menções da palavra "terra", entretanto, promovem tal ambiguidade ao se referir a toda a terra, e não apenas a um espaço limitado dela.

Similaridades do Relato Bíblico com "Dilúvios" Descritos por Outras Civilizações

Relatos históricos de outras civilizações a um dilúvio possuem descrições similares, embora quase sempre um escopo e teologia diferente. Um exemplo disso está no relato da antiga Mesopotâmia, The Epic of Gilgamesh, que reconta a história de um dilúvio extremamente semelhante ao descrito na Bíblia. 

Críticos frequentemente apontam The Epic of Gilgamesh como um indicativo de que o dilúvio de Noé nada mais é do que um plágio de uma história ainda mais antiga, sobre um homem que construiu um barco, reuniu todas as espécies de animais após os deuses decidirem destruir a humanidade. Embora algumas menções a um dilúvio por civilizações passadas provavelmente tenham mais a ver com o fato de estarem localizadas em regiões litorâneas, outras, como o dilúvio Bíblico e o mencionado no "The Epic of Gilgamesh" podem naturalmente se tratar de descrições de diferentes observadores para o mesmo evento.[7]

Conclusão

Dessa forma, a menos que as principais objeções apresentadas sejam satisfatoriamente respondidas, é mais provável que o dilúvio mencionado nas escrituras tenha sido de natureza local, ao invés de global e com um número limitado de animais presentes naquela região. Tal conclusão seria mais plausível ao se enquadrar nos relatos históricos e geológicos, e em absolutamente nada afetaria as lições espirituais que podemos extrair do exemplo de Noé e sua família.

Referências:

[1] Gênesis 6, 7, 8.
[2] Mateus 24:37-39, 1 Pedro 3:20, Hebreus 11:7, Moisés 7:42,43, Abraão 1:19, 2 Pedro 2:5
[3] Khufu's Great Pyramid, Unmuseum.org
[4] Geologic Evidence May Support Chinese Flood Legend, Aug 2016, National Geographic
[5] The Flood and the Tower of Babel, Donald W. Parry, Churchofjesuschrist.org
[6] Duane E. Jeffery, "Noah’s Flood: Modern Scholarship and Mormon Traditions," Sunstone no. (Issue #134) (October 2004), 31–32
[7] Noah's Ark and Floods in the Ancient Near East: Crash Course World Mythology #16, Crash Course, June 2017



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