Como Pode Existir Livre Arbítrio se Deus já Sabe o Futuro? | Intérprete Nefita

Como Pode Existir Livre Arbítrio se Deus já Sabe o Futuro?


Por Lukas Montenegro 06 de Fevereiro de 2022
Como Pode Existir Livre Arbítrio se Deus já Sabe o Futuro?

PERGUNTA:

Se Deus é onisciente e sabe do fim desde o princípio como ensinam as escrituras, parece não haver de fato livre arbítrio, já que não poderíamos escolher nada além do que Deus já sabe que irá acontecer. Como pode existir livre arbítrio se Deus já sabe o futuro?

RESPOSTA:

Uma das perguntas mais antigas e famosas da história do pensamento humano é esta: Se existe algum Ser capaz de conhecer o futuro antes que ele ocorra, como é possível que exista de fato o livre árbitro? Afinal, se esse Ser já sabe que irei ao shopping semana que vem, antes mesmo de acontecer ou de eu se quer decidir que irei, eu tenho escolha se não ir? 

Para os filósofos gregos essa pergunta era profundamente desconfortável e só com Aristóteles (o último dos grandes acadêmicos da era clássica) que ela ganhou um enunciado mais claro, bem como uma tentativa de resposta. Aristóteles era profundamente empirista e acreditava que tudo que existe pode ser deduzido do que se observa na natureza [1]. Assim, como o livre árbitro é uma qualidade observada nos seres vivos, ela deve ser verdadeira. Ele concluiu, portanto, que para que não haja contradição, não pode existir um Ser que conheça o futuro. 

Alguns séculos após Aristóteles, o pensamento do mundo ocidental havia sido dominado pela doutrina cristã. Plotinus foi o primeiro a perceber que os ensinamentos cristãos harmonizavam profundamente com as visões do professor de Aristóteles, Platão, que havia postulado a existência de um mundo eterno das Ideias onde tudo é perfeito, e que as coisas deste mundo são meramente sombras ou imitações mal feitas das coisas daquele plano mais elevado. Nossa alma imortal conhece aquele mundo e anseia por retornar a ele. Compare isso com vários dos ensinamentos de Cristo, que enfatizavam a existência de um reino mais elevado do qual Ele, um ser transcendente, pertencia originalmente [2]. Surgia então o "neoplatonismo", uma adaptação dos ensinamentos de Platão facilmente aplicável ao cristianismo, e que influenciaria muitos teólogos e pensadores importantes como Santo Agostinho de Hipona [3]. 

Outro profundamente influenciado pelo neoplatonismo foi o filósofo Boethius do século 6 D.C, que tentou utilizá-lo para responder a contradição entre a onisciência de Deus e o livre árbitro do homem. Diferente de Aristóteles (por razões doutrinárias óbvias), Boethius não podia negar a existência de um Ser que conhecia o futuro. Não podia também, entretanto, negar a existência do livre árbitro. A solução na qual chegou foi extremamente refinada do ponto de vista argumentativo. O lema de Boethius era que o nível de conhecimento possível está diretamente associado as características de quem possui o conhecimento. Assim, ele construiu o seguinte silogismo [4]:

1. Ao contrário de nós, Deus encontra-se fora do fluxo do tempo. Para ele é como se o passado, presente e futuro fossem um grande "presente". 

2. No presente, qualquer Ser tem a capacidade de aprender (adquirir conhecimento) sobre sua realidade sem precisar interferir no árbitro. 

3. Logo, Deus é capaz de obter conhecimento do futuro sem interferir com o árbitro. 

Definir o caráter temporal de Deus como diferente da percepção humana de tempo é a chave do raciocínio de Boethius. Através desta definição é que as qualidades de onisciência e livre arbitrio são conciliadas [5]. Resta somente demonstrar que a primeira proposição, de que o tempo de Deus é diferente do nosso, é verdadeira. O paradoxo lógico, contudo, é solucionado. 

Na época de Boethius as escrituras disponíveis não lançavam luz nessa contradição. Com as escrituras modernas, contudo, ganhamos referências mais claras, na forma de revelação, sobre o assunto. Perguntado sobre a habitação dos anjos, o Profeta Joseph Smith esclaresceu:

"Habitam na presença de Deus, em um globo semelhante a um mar de vidro e fogo, onde todas as coisas passadas, presentes e futuras manifestam-se para sua glória; e estão continuamente diante do Senhor." [6].

O que corrobora com a suposição de Boethius sobre o tempo de Deus.

O avanço da ciência moderna traz força adicional ao argumento. A teoria da relatividade, por exemplo, prevê como diferentes observadores podem ter conceitos diferentes de tempo dependendo de características como sua localização e velocidade [7]. Essas previsões já foram comprovadas experimentalmente com excelente precisão.

 

REFERÊNCIAS 

[1] "The Philosophy Book", DK publishing (2011), pg. 58-63.

[2] João 8:23.

[3] Idem a [1], pg. 72-73.

[4] Silogismo é uma construção lógica de três partes, composta de suas suposições aceitas como verdadeiras que levam à uma conclusão verdadeira.

[5] Idem a [1], pg. 74-75.

[6] D&C 130:7.

[7] Para mais informações sobre a teoria da relatividade, um artigo interessante é indicado: "Entenda de uma vez: Teoria da Relatividade" da Super interessante, disponível em:  https://super.abril.com.br/ciencia/entenda-de-uma-vez-teoria-da-relatividade/.



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